Verônica

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

Ela andava pra lá e pra cá. Uma pausa, um momento de silêncio. Devia estar parada na janela. É o que levava a crer sua movimentação. De repente, num sobressalto, de novo

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

E parava de novo. Devia estar descalça. No apartamento ela só andava descalça, ou só de meia. Se andasse de tênis não faria barulho nenhum. Se andasse de sapato seu caminhar faria "toc, toc" e não "tuc, tuc". Mas ela não tinha jeito de quem usa sapato, não com aquela boina. Seu estilo era outro.

Dava pra ver — ou ouvir — no seu caminhar que era uma pessoa ansiosa. Eram passos curtos, rápidos, como quem quer chegar logo, mas pareciam sempre parar no meio do caminho, como se algo a fizesse mudar de ideia, algum perigo, algo que pudesse dar errado. Havia uma parada entre as caminhadas, curta, e depois de uma série de paradas curtas vinha uma parada longa, sempre perto da janela.

"Se pá, ela fuma."

Suzana tinha quase certeza de que ela fumava. Dava pra intuir pelo padrão de sua movimentação. Sua mãe também era assim quando estava ansiosa: caminhava pra lá e pra cá com passadas curtas, acendia um cigarro e dava uma parada comprida, degustando calmamente a nicotina que seu organismo absorvia. E claro: sua mãe fumava, logo era ansiosa.

Ou era ansiosa, logo fumava.

"A ordem dos tratores não altera o viaduto."

De qualquer modo dava pra saber que dentro do apartamento ela só andava descalça ou só de meia. Se andasse de sapato o som de seu caminhar seria aberto, não abafado. A não ser que seu apartamento fosse carpetado, mas não havia apartamentos carpetados no Pasárgada. E ela não tinha jeito de quem usa sapato.

"Não com aquela boina."

Seu estilo é outro, com certeza. Ela não era do tipo que usa sapato, nem vestido longo, nem blazer. Ela não fazia o tipo corporativo, era até bem jovem pra isso, mas também não era desocupada. Devia ser universitária, apesar de parecer um pouco mais velha que os estudantes que esperavam no ponto do outro lado da rua. Quer dizer, não mais velha, mais madura.

Madura. Pelo menos parecia. Talvez não tão madura, talvez fosse só impressão. Mas desocupada com certeza não era. Acordava cedo e pegava o dez pra hora todas as manhãs — pelo menos todas as manhãs de segunda a sexta. Claro! O dez pra hora, "Universidade"! Ela pegava o "Universidade", devia ser, na certa, universitária. Apesar de parecer mais madura.

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

Os passos curtos voltaram. Pra lá e pra cá. Se fossem outros tempos Suzana ficaria puta. Outros tempos ou outra vizinha. Suzana gostava dessa, já houvera piores no quinto. Bem piores. Piores do tipo corporativo, do tipo que anda de sapato no apartamento. Pareciam sempre querer sair voando, e bem que podiam! "Toc, toc, toc,toc..." Era difícil aguentar. Mas a de agora, a moça da boina. Essa era de boa. Sem comparação. Sem sapatos, sem festinha, sem visitas.

Sem visitas.

É, ela devia ser universitária, devia ser "de fora". Sem família aqui, sem amigos. Sem ninguém. Quer dizer... teve um moço uma vez, talvez amigo, namorado, namorido. Vai saber. Suzana só o viu uma vez, mas ele tinha jeito de ser daqueles que vêm sempre. Um piá com cara de sonso. Suzana sabia que não o veria mais, não tinha como, aquela cara de pateta, com uma pessoa tão... Madura.

"Será que eu pareço madura?"

Mais alguns passinhos descalços — ou só de meia — pra lá e pra cá. Pelo padrão de sua movimentação Suzana sabia que ela estava prestes a parar de novo com aquele zigue-zague e estacionar por um tempo na janela. Suzana foi até sua própria janela, se sentisse o cheiro do cigarro teria certeza de que ela fuma (só pra ter certeza de que estava certa, de que sabia ler os sinais). Mas que burrice! "Suzana, sua burra!" O ar quente sobe. Se ela acender um cigarro não dá pra sentir o cheiro do quarto, só do sexto.

Suzana se aquieta um pouco, talvez nunca saiba se está certa. Mas em seu silêncio ela escuta algo, um som bem baixinho, um tsc. Um isqueiro! Sim, foi um isqueiro! Ou ela teria imaginado? Se ela usasse fósforos Suzana teria certeza. Mas ela não tinha jeito de quem usa fósforos.

"Verônica..."

Ela escutou algo. "Verônica"? Será que a moça do quinto estava com alguém? Não pode ser, ela não ouvira mais nada desde... Desde que começara a prestar atenção. Se bem que não dava pra ouvir muita coisa do quinto longe da janela, só os passos mesmo.

"Sua burra!"

Não. Ela não parecia estar falando com alguém. Não nesse tom, não com essa pausa entre o início e o fim da frase, como se estivesse num filme. Parecia estar só pensando alto. Se é que é possível "pensar alto", pensar fora da cabeça, como se os pensamentos pudessem ser lidos ou ouvidos por alguém. Não, o nome disso é "falar sozinha".

Falava sozinha e com certeza fumava. Do jeito que ela falou consigo mesma dava pra ter certeza: "Verônica..." longa tragada, degustando calmamente a nicotina que seu organismo absorvia, solta a fumaça, "sua burra!". Quem fala sozinho e fuma costuma conversar consigo mesma durante o rito, e muitas vezes isso inclui se repreender, se xingar.

"Meu Deus, como ela lembra minha mãe!"

Verônica. Era esse então o nome. Suzana vai até a mesa silenciosamente, como se Verônica pudesse saber que ela a estava espiando caso ouvisse seus passos (se bem que nem se pode chamar isso de espiar, ela nem tava vendo nada, só ouvindo). Suzana vai até a mesa, pega o caderno ao lado de sua máquina fotográfica semiprofissional, e anota

Verônica. Fuma. Em casa anda descalça (ou só de meias, não sei ainda). Sozinha. Usa boina. Pega o dez pra hora. Universitária?

Sozinha. Suzana estranhou não ver mais ninguém depois do piá com cara de sonso. Verônica era bonita. Quer dizer, não exatamente bonita, não um "bonita" que se enquadra em todos os padrões de beleza, mas tinha alguma coisa nela — um estilo, um jeito — que tornava ela atraente. Quer dizer, devia torná-la atraente, para os homens. Ou para as moças que gostam de moças. Vai saber.

De qualquer forma, seja lá qual fosse seu drama, Verônica devia tê-lo esquecido ou ido dormir. O "tuc tuc" parou. Talvez fosse a deixa para Suzana. Não tinha nada mais interessante pra fazer.

***

Quinze para as sete. Depois de acompanhar a rotina matinal do Senhor Chan na horta da esquina com sua máquina fotográfica semiprofissional e sua teleobjetiva 250 milímetros, Suzana pega sua bolsa e desce as escadas: o Pasárgada tem seis andares, mas nenhum elevador. Ela desce tranquila (o ponto é do outro lado da rua), mas quando chega no portão sente que tem algo estranho. Ela fuça na bolsa e não encontra o cartão do passe.

"Suzana, sua burra!"

Suzana entra no prédio correndo, agora não tem mais tempo a perder — quatro andares de subida, mais quatro andares de descida, mais o tempo de encontrar o cartão, e lá se vai o hora certa avenida acima! Ela atravessa o pequeno estacionamento o mais depressa que pode antes de empurrar a porta e esbarrar com alguém que desce, tão desesperada quanto ela. (Ela pega o dez pra hora todas as manhãs. São dez pras sete agora.) Após o choque, ambas travam por um momento. Silêncio.

"Bom dia, Verônica."

"Fala: bom dia, Verônica! Não é tão difícil." Mas tudo parece difícil segunda-feira às dez para as sete da manhã.

— Desculpa.
— Foi nada.

Foi a única interação que o horário e a situação permitiam. "Suzana, sua burra!" Suzana sai correndo para um lado. Verônica sai correndo para o lado oposto, gritando baixinho, se é que isso é possível:

"Verônica, sua burra!"

Um conto chinês

Roberta tinha um carinho especial por aquele velho Conto Chinês. Ela o conhecia como ninguém e enxergava nele cada uma das infinitas possibilidades que se abriam diante dela quando o revisitava. Poucos entenderiam o que ela sentia quando desbravava suas páginas.

Ela conhecia cada personagem, cada enredo, cada fábula. Mais do que isso: às vezes Roberta se sentia parte do Conto Chinês, como se tivesse sido gerada num de seus parágrafos, num lampejo criativo, há muitos anos. Quando desvendava o Conto ela era uma personagem, um enredo, uma fábula impressa nas linhas do Tempo muito antes do que pudesse imaginar.

Roberta sempre desbravava as páginas do Conto Chinês como uma criança que lê pela primeira vez o que virá a ser sua história favorita. E entre as tramas já tecidas lá estava ele, seu personagem favorito, apoiado sobre o braço direito, piscando duro, com cara de poucos amigos. Sempre que Roberta entrava no mundo mágico do Conto Chinês, ele fechava ainda mais a cara, como se não quisesse compartilhar com mais ninguém aquele espaço que, paradoxalmente, ele compartilhava com inúmeras outras histórias.

Ele era uma incógnita, uma esfinge, um mistério em si próprio. Apesar de passear entre as páginas do Conto Chinês quase todos os dias, Roberta nunca o decifrara. Às vezes ele falava, sempre de cara amarrada. Às vezes só ficava lá, imóvel, sem sequer levantar o olhar. Mas a garota lia sua quietude como uma prova ímpar de sua amizade: ninguém mais a acolhia com tanta segurança no próprio silêncio – nem seu pai, nem sua avó, nem Fábio. Ninguém.

Que se lembrasse, ela jamais o vira longe daquelas páginas. Era um personagem exclusivo daquela história. Todos os seus medos, sonhos e desejos estavam impressos no Conto Chinês. Como algo tão breve, tão acanhado, fechado em si só, um conto apenas, palavras que muita gente lia ou palavras que ninguém jamais leria, podia abarcar, ao mesmo tempo, o conteúdo todo de uma existência inteira?

Era uma vida que qualquer um poderia ler, contanto que encontrasse perdido o Conto Chinês nas prateleiras da vida. Mas que seria muito difícil entender: pois são as frases simples que carregam em si os maiores mistérios.

Era engraçado. Era com quem Roberta menos trocava palavras e, ao mesmo tempo, com quem mais conversava. Seu silêncio a abrigava como o Conto Chinês o abrigava.

E era exatamente isso que a preocupava.

KGB

Era uma manhã nublada de sábado e ela estava lá: imóvel, a mão direita apoiada no portão aberto, entre os dedos da mão esquerda o sempre aceso Marlboro vermelho, olhos e ouvidos atentos a toda e qualquer movimentação estranha. Aquela era a sua área e nada poderia escapar do seu radar.

Alguns fotógrafos permanecem horas parados no mesmo lugar e na mesma posição para que seus motivos esqueçam que eles estão lá. Essa parecia ser sua estratégia: ficar lá, imóvel, minutos, talvez horas (quem saberia dizer?), tornando-se lentamente parte da paisagem.

Assim ninguém a veria.

Assim ela veria tudo.

Seu posto, estrategicamente localizado numa esquina pouco movimentada, a permitia estar atenta a todo o movimento sem chamar a atenção. Quantas conversas, transações e trocas já haviam ocorrido sob seu olhar atento sem que os participantes a notassem? Quantos segredos já a tinham como parte envolvida sem que as outras partes soubessem?

A tia da esquina era realmente os olhos e ouvidos da Vila Jacobucci.

***

Às vezes Bruno esquecia que o vidro da porta da quitinete dava para a esquina e saía do banheiro de cueca, só para dar de cara com a tia da esquina. Ele dava um pulo para trás para sair do campo de visão sempre que isso acontecia, mas um dia Bruno notou algo interessante: ela nunca estava olhando!

Então ele começou a observá-la.

Ela era como o resultado da Tele-Sena: saía sempre de hora em hora. Para ela não havia fim de semana ou feriado: todos os dias, de hora em hora, ela encostava no portão, fumava demoradamente dois cigarros, com um intervalo maior ou menor entre eles dependendo do movimento na rua, e voltava para dentro do QG. E ela nunca estava olhando para Bruno.

Naquela manhã de sábado Bruno começou a observá-la de diferentes postos.

Às dez horas, de dentro da quitinete, que ficava a uns cinquenta metros da esquina. Nada. Às onze Bruno desceu e fingiu varrer a calçada. Nada. Meio-dia ele atravessou a rua e comprou quatro salgados de um real no Caribe's, a lanchonete/sorveteria/açaizeiro do bairro. A tia da esquina estava lá, mas não estava olhando para ele.

Ela era como esses retratos de santos que te perseguem com o olhar, desses que as avós têm pendurados nas paredes, só que ao contrário.

No fim da tarde, às 17h59, já cansado de testar diferentes lugares, Bruno apenas colocou a cabeça na janela da cozinha. Três, dois, um... O portãozinho branco se abre, a tia da esquina sai, tira o maço de Marlboro do bolso do short jeans, acende seu cigarro e dá uma longa tragada.

O que ela queria? Por que estava sempre lá? Será que o simples prazer em ver o movimento (ou a falta de movimento) da rua era suficiente para que ela saísse religiosamente de hora em hora todos os dias e fumasse dois Marlboros vermelhos no portão?

Bruno abriu uma Brahma e se sentou no sofá, pensativo. Algo o chamou a atenção em sua estante. Um livro estava quase caindo. Ele se levantou e ajeitou o livrinho de capa vinho em seu lugar. Era um dos livros de bolso que Bruno havia comprado no Conto Chinês. Seu olhar fisgou o título na lombada: Nosso homem em Havana.

Numa fração de segundo tudo clareou e uma enxurrada de livros de bolso de Graham Greene e filmes de guerra de baixo orçamento saltaram do subconsciente de Bruno. Agora fazia sentido!

A tia da esquina, que sempre estava lá. Era o disfarce perfeito: a tia da esquina! Ela era uma espiã!

Ela não se parecia com uma espiã, mas não é exatamente essa a principal característica que uma espiã deve ter? Short jeans, blusinha tamanho G com estampa de orquídea, voz de cigarro. Quem desconfiaria?! Talvez ela não fosse necessariamente uma espiã internacional, mas poderia ser uma agente à paisana da Polícia Federal. E se fosse uma agente à paisana da PF, poderia muito bem ser uma agente dupla, trabalhando para a CIA, o MI6 ou a KGB!

A veia artística de Bruno começou a coçar. Esse era o tema perfeito para um romance: a tia da esquina que na verdade era uma espiã da KGB disfarçada.

Empolgado, Bruno ligou seu laptop, abriu o editor de texto pirateado e digitou:

A tia da esquina.

"Não, parece uma comédia do Leandro Hassum."

A agente dupla.

"Não, muito explícito."

"Um título! Um título!" Bruno precisava de um título. Só um título para que a ideia não morresse, mas ele não conseguia pensar em nada que se parecesse com um título. Tudo o que ele digitava soava como uma manchete do Sensacionalista ou um nome de filme dos Trapalhões.

Então, ele tamborilou os dedos na mesinha, deu um gole em sua Brahma, respirou fundo e digitou:

Nossa mulher na Vila Jacobucci (título provisório).

***

Bruno estava exausto. Durante seu longo dia de folga, para ter pretextos para espiar a suposta espiã, ele varreu a calçada, lavou o corredor externo das quitinetes, comprou seu almoço no Caribe's, foi à padaria e ao mercado, lavou a janela da cozinha, arrancou os matinhos da sarjeta e pingou óleo nas dobradiças do portão.

Ele abriu o chuveiro e se desligou durante 15 minutos, enquanto a água morna caía. Nada como um banho relaxante depois de um longo dia de investigação.

Bruno tinha uma ideia e um título. Agora era só escrever o romance, mas isso é o de menos.

Ele saiu do banheiro se enxugando, com a sensação de dever cumprido, e estendeu a toalha sobre a máquina de lavar. Foi quando percebeu.

"Meu Deus!" De súbito, Bruno deu um pulo pra trás.

O vidro da porta estava aberto.

KGB estava olhando.

Eu tô exausta!

"O Coro suplica às divindades da morte que concedam um fim pacífico a Édipo."

Será que não compensaria mais suplicar a outras divindades que Édipo não morra? Ou quem sabe só chegar no Édipo e falar “ô, na moral, fica quietinho aí, não vai caçar mais encrenca”?

Não é por nada, é que eu só consigo pensar que a morte dá muito trabalho. Nunca mais esqueço de quando meu avô morreu e minhas tias tinham tanta coisa pra se preocupar que esqueceram de acionar a funerária. Quando o corpo chegou não tinha mais quase ninguém pra velar (mas todo mundo elogiou tanto o velório que a tia Lica hoje trabalha com organização de eventos).

Sei lá, é que eu tô numa vibe muito prática ultimamente, deve ser a canseira do Mestrado.

Tô tão cansada que até ver alguém resolvendo problemas me cansa. Comecei a criticar tudo o que leio e assisto bem mais do que criticaria normalmente, mas não é culpa minha: é dos escritores, eles que complicam muito as coisas.

Eu tive que ler três obras de Shakespeare pra um artigo e no fim não conseguia começar o artigo porque tudo o que vinha à minha mente era que com um pouco de bom-senso toda essa merda poderia ter sido evitada!

Na verdade, como eu tô simplificando a minha vida (e também por estar exausta), eu não li as obras, tava muito cansada, então li os resumos num livrinho que eu tenho chamado “Resumos da Obra Completa de Shakespeare”. Não era o ideal, mas deu pra entender que com um pouco de bom-senso todas essas tragédias poderiam ter sido evitadas.

E por falar em tragédia, os gregos também complicavam demais as coisas. O que custa perguntar antes de brigar na corte de um rei sanguinário, matar um estrangeiro numa encruzilhada ou lançar seu exército em excursão contra outra cidade? Talvez perguntar evite criar um desafeto, matar alguém ou começar uma guerra que vai durar gerações.

E como eu cheguei às tragédias gregas se eu tô numa vibe de simplificar a minha vida? Bom, a culpa é do Mestrado. A culpa de tudo é do Mestrado.

Eu tinha um artigo pra escrever sobre tragédias gregas. “Ah, Verônica, mas não era sobre Shakespeare?”. Pois é: eu estava escrevendo o artigo sobre a trilogia tebana (três peças escritas pelo dramaturgo grego Sófocles) quando, no meio do caminho, senti que tinha alguma coisa errada, peguei meu caderno e vi que o meu artigo era sobre Shakespeare.

Tudo bem, eu podia ter prestado mais atenção, mas eu tô exausta, e o professor também não precisava complicar tanto. Por que caralhos passar temas diferentes?! Isso é um Mestrado, qual é o medo dele: que a gente copie de um colega mais chegado só mudando o estilo de escrita e fazendo pequenas modificações ao longo do texto?

Tá. Pensando bem, eu também passaria temas diferentes.

Enfim. Fiquei tão puta (e tava tão cansada) que decidi não ler as peças na íntegra. Guardei meu livrinho com os resumos das tragédias gregas e peguei o livro de resumos da obra de Shakespeare. Só pra descobrir que complicar demais as coisas não era exclusividade da antiguidade.

De drama já basta minha vida. Pra que tanto conflito nessas histórias?

Aí você me diz: mas Verônica, o conflito é o motor da tragédia, o elemento básico da dramaturgia, sem ele nem existiriam esses textos!

Melhor ainda. Um artigo a menos pra escrever. Eu tô exausta!

A ilha do Senhor Chan

Da janela do seu apartamento no quarto andar, Suzana toma seu café e observa o Senhor Chan na horta da esquina. Todos os dias ele chega à seis em ponto, abre o portão do grande terreno, coloca seu grande chapéu e começa a trabalhar. Pelo menos todos os dias de segunda a sexta.

Suzana acompanha o início dos trabalhos do Senhor Chan desde quarta retrasada, quando foi dormir muito cedo e acabou acordando antes do despertador tocar. Desse dia em diante ela começou acordar mais cedo, passar o café e se posicionar na janela às cinco para as seis.

A horta da esquina é um lugar um tanto curioso, uma ilha verde flutuando no centro cinzento da cidade, e seu guardião, o Senhor Chan, é um senhorzinho que passa o dia todo cultivando uma grande horta nessa ilha.

Num dos cantos do terreno há uma construção com grandes portas de madeira onde o Senhor Chan entra todas as manhãs, depois de fechar o portão do terreno, fazer uma oração e dar sua ronda matinal entre as hortaliças. Pelo menos todas as manhãs de segunda a sexta.

Fica difícil ver o que o Senhor Chan faz dentro da construção, então Suzana deixa sua máquina fotográfica semiprofissional a postos sobre a mesa, já montada com sua teleobjetiva 250 milímetros (que é só um nome bonito pra uma lente com um zoomzão). Já que ela está observando, não tem nada de mais em querer enxergar melhor.

Mais que depressa, Suzana tira a tampa da lente, aponta para a porta da construção e foca para ver o Senhor Chan calçando as botas de borracha, colocando seu grande chapéu cônico de palha bege, pegando sua caixinha de madeira cheia de pazinhas alaranjadas e saindo da construção.

Entra no terreno, fecha o portão, faz uma oração, vasculha a horta, entra no barracão, bota as botas, coloca o chapeuzão, pega a caixinha de ferramentas.

"Nada de mais..." pensa Suzana, logo após anotar.

Sim, anotar.

É difícil lembrar o que cada vizinho faz.

Por isso Suzana deixa um caderno de anotações sobre a mesa, ao lado da máquina fotográfica semiprofissional com sua teleobjetiva.

Não torça o nariz e engula essa risadinha: se você morasse no quarto andar e tivesse uma máquina fotográfica semiprofissional com uma teleobjetiva 250 milímetros faria a mesma coisa! Ao menos é o que Suzana diz a si própria toda vez que se sente culpada por espiar o Senhor Chan, a vizinha da frente, Dona Marta, a vizinha de cima, Verônica, os universitários que esperam o ônibus no ponto da rua de trás ou Messias, o motorista de ônibus que às vezes espera o ônibus nesse mesmo ponto depois do seu turno.

Suzana fica imaginando como deve ser a vida dessas pessoas quando ela não está olhando. Onde será que o Messias mora? Pra onde Verônica vai com sua bolsa e sua boina de veludo toda manhã? O que o Senhor Chan faz em casa? Qual será o verdadeiro nome do Senhor Chan?

Não, não é "Senhor Chan".

Suzana não sabe nada sobre as pessoas que observa, por isso cria nomes e histórias pra elas em seu caderno. E não tem nada de mais nisso. Quer dizer, você faria a mesma coisa... Não faria?

Mas como já são quinze para as sete e Suzana tem que se trocar correndo pra não perder o ônibus (Messias, ou seja lá qual for seu nome, é muito pontual), não há mais tempo para criar histórias pra mais ninguém.

Suzana sai depressa. A última coisa que ela quer é topar com a Dona Marta, que sai pra comprar pão todos os dias pontualmente às cinco para as sete. Ela vive metendo o bedelho na vida dos outros, a Dona Marta — ou seja lá qual for seu nome.

Suzana sai depressa, mas espera tempo suficiente no corredor pra topar com Verônica na escada.

Desse nome Suzana tem certeza.

Verônica fala sozinha.

A santa da boina de veludo

Eu estava tão cansada. Cansada como não ficava há meses.

Acordei às seis, mas levantei só seis e meia.

Antes de mais nada coloquei o bendito livro sobre a mesa da cozinha. Não podia correr o risco de atrasar essa devolução na biblioteca. O bibliotecário, antes meu amigo (meu ex-único amigo), já nem olhava na minha cara. Isso fora a multa. Eu não podia correr o risco de pagar nada além do programado  — eu mal podia pagar o programado.

Minha última missão antes de subir no último ônibus do dia seria cansativa, mas gratificante, e eu podia imaginá-la: passar pelo lago do campus, subir as escadas ao lado do Restaurante Universitário, atravessar o gramado, subir a rampa de acesso à biblioteca, atravessar as portas de vidro, sorrir vitoriosamente para Felipe (o bibliotecário) e, enquanto mexo dentro da bolsa para pegar o bendito livro, ver meu dia passando ao contrário na minha mente, lembrando cada passo até chegar ao balcão:

O caminho da sala à biblioteca, a prova que terá acabado de terminar, o caminho do trabalho à Universidade, o longo dia de estágio, o caminho de casa até o trabalho, a manhã penosa em que minha primeira ação foi, antes de mais nada, pôr o livro sobre a mesa para não me esquecer de devolver.

Ao menos uma vitória esse dia teria.

Peguei minha boina sobre a mesa, botei na cabeça e segui — apesar desse cansaço, que sequer me deixava lembrar o conteúdo da prova. Isso me preocupava. Talvez fosse o estágio que consumia minhas manhãs e tardes, talvez fosse o peso de agora ter que lembrar de pagar as contas ou quem sabe fossem as aulas aos sábados de manhã — isso é legal, do ponto de vista da Legislação?!

Mas de qualquer forma era sexta-feira, e sexta-feira tem algo no ar, uma magia rejuvenescedora, por mais que se tenha aula no sábado de manhã.

Não que antes eu fosse a maior nerd do mundo, mas agora que eu não tinha tempo era atacada por uma estranha fome de conhecimento. Tive que rever as anotações para a prova no ponto de ônibus. As matérias do curso se tornaram as sobras do pouco que eu conseguia ouvir em aula, requentadas numa panela com farinha e ovos, uma gororoba acadêmica sem precedentes.

Minha hipótese: eu amo à moda de Platão. Amo alguém quando estou solteira, amo suas qualidades; amo trabalho quando estou desempregada, amo o dinheiro; amo os livros quando tenho que trabalhar, amo não ter que trabalhar. Agora eu estava empregada, mas não podia ler, mas já dizia o profeta: “Segue o lance!”

Existe um buraco negro entre as quatro e as cinco. Ele engole o tempo e nos faz patinar por horas, dias, semanas, até que chegue a hora de ir embora. Não importa o quanto você trabalhe: isso não vai durar mais do que três minutos.

Talvez seja esse buraco negro que sugou para a escuridão infinita toda a minha energia. Vai saber?

De qualquer forma não há como fugir da maldição da última hora.

Finalmente chega a hora, bate o sino, fim de jogo.

Mas dia de universitária só acaba à noite. E universitária não tem reserva. E tem prova. Então, fim do primeiro tempo.

Eu adoraria poder pensar “tomara que caia a parte que eu entendo melhor”, mas eu não entendia bem parte nenhuma. Porque o pouco que anotei em aula já não era muito, o pouco que consegui ler do que anotei tornava esse pouco ainda menos e ler anotações no ponto, dividindo a atenção entre notas e placas de ônibus, ajuda apenas a termos certeza de que não fazemos ideia do que estamos fazendo com as nossas vidas.

Eu não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida.

Dei um pulo, esfreguei os olhos e olhei novamente para a folha em branco. Não era a melhor hora para ter alucinações de sono. Mas também não era a melhor hora para fazer uma prova e foi daquelas provas que assim que você termina não faz ideia do que acabou de escrever.

Foi uma hora lastimável, digna de esquecimento. Pelo menos o dia estava chegando ao fim.

Mas dia de universitária tem prorrogação.

Antes de, finalmente, subir no último ônibus da sexta-feira e seguir confortavelmente para casa, hipnotizada pelo cansaço e pelas luzes dos postes, eu passo pelo lago do campus, subo as escadas ao lado do Restaurante Universitário, atravesso o gramado e a rua, subo a rampa de acesso ao patamar da biblioteca, atravesso as portas de vidro, encaro Felipe com um sorriso vencedor, abro o zíper e, enquanto mexo dentro da bolsa, meu dia passa ao contrário por minha mente, lembrando cada passo até chegar a esse balcão:

O caminho da sala à biblioteca, a prova que acabei de terminar, o caminho do trabalho à Universidade, o longo dia de estágio, o caminho de casa até o trabalho, a manhã penosa em que minha primeira ação foi, antes de mais nada, pôr o livro sobre a mesa; o livro que, nesse momento, ao virar a bolsa desesperadamente sobre o balcão frente ao sorriso vencedor de Felipe, eu agora tenho certeza de ter esquecido sobre a mesa da cozinha ao pegar a boina e colocar na cabeça.

Jogo a alça da bolsa sobre o ombro, exausta, após a última batalha (derrota) do dia e penso que pelo menos agora vou pra casa e posso dormir até segunda-feira.

Entro no último ônibus da sexta-feira, após a última derrota da sexta-feira e volto pra casa.

O bom de pegar o último ônibus é que eu posso sentar no lugar que eu quiser, porque nessa viagem dentro do ônibus só tem eu e o Bruno, o motorista/cobrador (meu novo único amigo). O Bruno e eu temos uma conexão: ambos reconhecemos a derrota no olhar um do outro. Então, quando um está ainda pior do que costuma estar o outro não puxa conversa.

Chego em casa depois de (mais) uma semana com gosto de 7 a 1. Penduro a bolsa na cadeira da cozinha e olho para o abençoado livro sobre a mesa, perfeito, intocado. Estiquei o braço para pegá-lo e enfiá-lo na bolsa e não correr o risco de esquecer de novo na segunda. Mas quer saber? Só de pirraça, deixei o bonito lá e prometi só colocar na bolsa na segunda-feira. (Eu não preciso dizer que na semana seguinte esqueci ele ali de novo. Preciso?)

Deitei na cama pensando na única vitória da semana, o gol de honra: dormir profundamente até... Me conformar e aceitar que naquela semana eu não ia ter nem o um do sete a um. Já com os olhos fechados me lembrei que agora eu tinha aula aos sábados de manhã, e não era optativa.

Vida de universitária, depois da prorrogação, tem pênaltis.

E eu estava tão cansada.

Verônica

Sonhos da Vila Jacobucci

Era uma noite quente.

Com a janela aberta, o ventilador ligado e uma latinha de Brahma suando sobre a mesa, Bruno aguardava impaciente seu velho laptop iniciar. Ele mal podia esperar para começar a escrever, mas já pensava no quanto isso não seria exatamente como ele gostaria que fosse.

Escrever num laptop não era muito emocionante, não tinha a mesma energia que datilografar numa máquina de escrever. Bruno nunca tinha visto uma máquina de escrever na sua frente, mas tinha certeza que seria muito mais emocionante escrever em uma.

O laptop era... Frio.

Não. Não era bem essa a palavra.

O laptop era...

Bom, seja lá o que for, não era importante. O fato é que as teclas do laptop não faziam o som seco e metálico das teclas da máquina de escrever e o papel não saía do laptop cheirando a tinta. Nem sequer saía papel do laptop: era só um monte de pontos escuros sobre um fundo de pontos claros. A máquina de escrever tinha um certo charme, era como "o som das rodas da grande locomotiva do entusiasmo empurrando o escritor pelos trilhos da inspiração".

Isso era bom! Bruno pensou em anotar, mas o laptop ainda estava... Sabe? Iniciando.

Bruno queria ser um escritor das antigas: datilografar seus poemas numa Olivetti Lexikon 80 (ele viu na internet que Bob Dylan usava uma dessas), sob o denso nevoeiro criativo da fumaça dos cigarros apagados no cinzeiro em seu apartamento mofado, meio chapado de uísque, depois de um dia de cão tentando manter seus sonhos vivos em Bunker Hill, Los Angeles (ele leu um livro sobre um escritor tentando manter seus sonhos vivos chamado "Sonhos de Bunker Hill").

Mas Bruno não tinha uma Olivetti Lexikon 80, nem a fumaça dos cigarros no cinzeiro, nem uísque, nem os perigos de Bunker Hill pra fazê-lo sonhar. Ele morava bem longe de Los Angeles, na Vila Jacobucci, a Brahma era bem mais barata que uísque (além de estar calor pra caralho!) e cigarro, afinal, causa câncer.

Tudo o que Bruno tinha era seu laptop velho que não fazia barulho quando ele digitava, a não ser o som da ventoinha. O Bruno odiava aquela ventoinha. Ela o desconcentrava, impedia que a inspiração fluísse através de sua veia artística. Se ele ao menos vivesse num lugar onde fosse difícil manter os sonhos teria material para seus poemas.

O laptop finalmente terminou de iniciar. Bruno fechou os olhos, soltou as mãos e parou de respirar por três segundos - para sentir a vida pulsando por todo o seu corpo, até chegar às pontas dos seus dedos. Pronto. Ele estava pronto para um grande poema.

Bruno estava calmo como o Tempo e impassível como a Eternidade. Ele abriu os olhos, esticou os braços e começou a digitar:

Carlos estava calmo
como o Tempo
e impassível
como a Eternidade.

Carlos era o alter ego de Bruno, seu personagem baseado nele mesmo. Ele abrasileirou "Charles" em homenagem aos seus dois poetas favoritos: Charles Baudelaire e Charles Bukowski.

Bruno estava em transe, em estado de fluxo, seus dedos formigavam. As ideias saíam de suas mãos como se ele fosse apenas uma estrada por onde elas passavam. Ele saberia responder qualquer pergunta que o fizessem. Suas mãos choravam poesia e naquele momento o universo inteiro caberia em sua quitinete. Ele continuou digitando:

Seu corpo era uma estrada
onde ideias viajavam.
Sua mente tinha
todas as respostas do mundo.
Suas mãos choravam poesia
e o Universo
inteiro 
cabia
em sua quitinete

Bruno parou de escrever. "É quitinete ou kitnet?".

Ele saberia responder qualquer pergunta que o fizessem naquele momento, menos essa. Bruno não podia continuar sem saber. Se seguisse deixando uma palavra errada para trás seu poema inteiro seria construído com base em um erro e perderia completamente a pureza poética.

Rapidamente, para não perder o fluxo, Bruno abriu o navegador. Pelo menos uma vantagem o laptop tinha sobre a máquina de escrever: acesso à internet. Mas a página não carregava. Bruno deslizou o olhar até o canto inferior direito da tela: sem sinal. Sim, outra vez, sem sinal de internet na Vila Jacobucci. Ele nem tentou o celular: mas estava sem crédito e completamente descarregado.

Com o fluxo cortado, Bruno podia sentir o poema se esvaindo, como se alguém abrisse a pia de sua inspiração e as palavras escorressem pelo o ralo para sempre, para o esgoto do esquecimento. Pouco a pouco ele voltava a sentir as pontas de seus dedos. As ideias foram embora tão rápido quanto chegaram, como se jamais tivessem acontecido.

Sem melhor opção Bruno foi dormir, pois a quinta-feira não seria nada fácil. Ele teria um dia de cão dirigindo aquele ônibus, tinha que resolver o problema do wi-fi, colocar crédito no celular e, deitado em sua cama, acabara de lembrar que tinha também que ligar na imobiliária: a infiltração no teto do quarto já estava mofando sua quitinete.

Maldita quitinete, fez Bruno perder um grande poema!

Não era fácil manter os sonhos vivos na Vila Jacobucci.