Um conto chinês

Roberta tinha um carinho especial por aquele velho Conto Chinês. Ela o conhecia como ninguém e enxergava nele cada uma das infinitas possibilidades que se abriam diante dela quando o revisitava. Poucos entenderiam o que ela sentia quando desbravava suas páginas.

Ela conhecia cada personagem, cada enredo, cada fábula. Mais do que isso: às vezes Roberta se sentia parte do Conto Chinês, como se tivesse sido gerada num de seus parágrafos, num lampejo criativo, há muitos anos. Quando desvendava o Conto ela era uma personagem, um enredo, uma fábula impressa nas linhas do Tempo muito antes do que pudesse imaginar.

Roberta sempre desbravava as páginas do Conto Chinês como uma criança que lê pela primeira vez o que virá a ser sua história favorita. E entre as tramas já tecidas lá estava ele, seu personagem favorito, apoiado sobre o braço direito, piscando duro, com cara de poucos amigos. Sempre que Roberta entrava no mundo mágico do Conto Chinês, ele fechava ainda mais a cara, como se não quisesse compartilhar com mais ninguém aquele espaço que, paradoxalmente, ele compartilhava com inúmeras outras histórias.

Ele era uma incógnita, uma esfinge, um mistério em si próprio. Apesar de passear entre as páginas do Conto Chinês quase todos os dias, Roberta nunca o decifrara. Às vezes ele falava, sempre de cara amarrada. Às vezes só ficava lá, imóvel, sem sequer levantar o olhar. Mas a garota lia sua quietude como uma prova ímpar de sua amizade: ninguém mais a acolhia com tanta segurança no próprio silêncio – nem seu pai, nem sua avó, nem Fábio. Ninguém.

Que se lembrasse, ela jamais o vira longe daquelas páginas. Era um personagem exclusivo daquela história. Todos os seus medos, sonhos e desejos estavam impressos no Conto Chinês. Como algo tão breve, tão acanhado, fechado em si só, um conto apenas, palavras que muita gente lia ou palavras que ninguém jamais leria, podia abarcar, ao mesmo tempo, o conteúdo todo de uma existência inteira?

Era uma vida que qualquer um poderia ler, contanto que encontrasse perdido o Conto Chinês nas prateleiras da vida. Mas que seria muito difícil entender: pois são as frases simples que carregam em si os maiores mistérios.

Era engraçado. Era com quem Roberta menos trocava palavras e, ao mesmo tempo, com quem mais conversava. Seu silêncio a abrigava como o Conto Chinês o abrigava.

E era exatamente isso que a preocupava.

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