KGB

Era uma manhã nublada de sábado e ela estava lá: imóvel, a mão direita apoiada no portão aberto, entre os dedos da mão esquerda o sempre aceso Marlboro vermelho, olhos e ouvidos atentos a toda e qualquer movimentação estranha. Aquela era a sua área e nada poderia escapar do seu radar.

Alguns fotógrafos permanecem horas parados no mesmo lugar e na mesma posição para que seus motivos esqueçam que eles estão lá. Essa parecia ser sua estratégia: ficar lá, imóvel, minutos, talvez horas (quem saberia dizer?), tornando-se lentamente parte da paisagem.

Assim ninguém a veria.

Assim ela veria tudo.

Seu posto, estrategicamente localizado numa esquina pouco movimentada, a permitia estar atenta a todo o movimento sem chamar a atenção. Quantas conversas, transações e trocas já haviam ocorrido sob seu olhar atento sem que os participantes a notassem? Quantos segredos já a tinham como parte envolvida sem que as outras partes soubessem?

A tia da esquina era realmente os olhos e ouvidos da Vila Jacobucci.

***

Às vezes Bruno esquecia que o vidro da porta da quitinete dava para a esquina e saía do banheiro de cueca, só para dar de cara com a tia da esquina. Ele dava um pulo para trás para sair do campo de visão sempre que isso acontecia, mas um dia Bruno notou algo interessante: ela nunca estava olhando!

Então ele começou a observá-la.

Ela era como o resultado da Tele-Sena: saía sempre de hora em hora. Para ela não havia fim de semana ou feriado: todos os dias, de hora em hora, ela encostava no portão, fumava demoradamente dois cigarros, com um intervalo maior ou menor entre eles dependendo do movimento na rua, e voltava para dentro do QG. E ela nunca estava olhando para Bruno.

Naquela manhã de sábado Bruno começou a observá-la de diferentes postos.

Às dez horas, de dentro da quitinete, que ficava a uns cinquenta metros da esquina. Nada. Às onze Bruno desceu e fingiu varrer a calçada. Nada. Meio-dia ele atravessou a rua e comprou quatro salgados de um real no Caribe's, a lanchonete/sorveteria/açaizeiro do bairro. A tia da esquina estava lá, mas não estava olhando para ele.

Ela era como esses retratos de santos que te perseguem com o olhar, desses que as avós têm pendurados nas paredes, só que ao contrário.

No fim da tarde, às 17h59, já cansado de testar diferentes lugares, Bruno apenas colocou a cabeça na janela da cozinha. Três, dois, um... O portãozinho branco se abre, a tia da esquina sai, tira o maço de Marlboro do bolso do short jeans, acende seu cigarro e dá uma longa tragada.

O que ela queria? Por que estava sempre lá? Será que o simples prazer em ver o movimento (ou a falta de movimento) da rua era suficiente para que ela saísse religiosamente de hora em hora todos os dias e fumasse dois Marlboros vermelhos no portão?

Bruno abriu uma Brahma e se sentou no sofá, pensativo. Algo o chamou a atenção em sua estante. Um livro estava quase caindo. Ele se levantou e ajeitou o livrinho de capa vinho em seu lugar. Era um dos livros de bolso que Bruno havia comprado no Conto Chinês. Seu olhar fisgou o título na lombada: Nosso homem em Havana.

Numa fração de segundo tudo clareou e uma enxurrada de livros de bolso de Graham Greene e filmes de guerra de baixo orçamento saltaram do subconsciente de Bruno. Agora fazia sentido!

A tia da esquina, que sempre estava lá. Era o disfarce perfeito: a tia da esquina! Ela era uma espiã!

Ela não se parecia com uma espiã, mas não é exatamente essa a principal característica que uma espiã deve ter? Short jeans, blusinha tamanho G com estampa de orquídea, voz de cigarro. Quem desconfiaria?! Talvez ela não fosse necessariamente uma espiã internacional, mas poderia ser uma agente à paisana da Polícia Federal. E se fosse uma agente à paisana da PF, poderia muito bem ser uma agente dupla, trabalhando para a CIA, o MI6 ou a KGB!

A veia artística de Bruno começou a coçar. Esse era o tema perfeito para um romance: a tia da esquina que na verdade era uma espiã da KGB disfarçada.

Empolgado, Bruno ligou seu laptop, abriu o editor de texto pirateado e digitou:

A tia da esquina.

"Não, parece uma comédia do Leandro Hassum."

A agente dupla.

"Não, muito explícito."

"Um título! Um título!" Bruno precisava de um título. Só um título para que a ideia não morresse, mas ele não conseguia pensar em nada que se parecesse com um título. Tudo o que ele digitava soava como uma manchete do Sensacionalista ou um nome de filme dos Trapalhões.

Então, ele tamborilou os dedos na mesinha, deu um gole em sua Brahma, respirou fundo e digitou:

Nossa mulher na Vila Jacobucci (título provisório).

***

Bruno estava exausto. Durante seu longo dia de folga, para ter pretextos para espiar a suposta espiã, ele varreu a calçada, lavou o corredor externo das quitinetes, comprou seu almoço no Caribe's, foi à padaria e ao mercado, lavou a janela da cozinha, arrancou os matinhos da sarjeta e pingou óleo nas dobradiças do portão.

Ele abriu o chuveiro e se desligou durante 15 minutos, enquanto a água morna caía. Nada como um banho relaxante depois de um longo dia de investigação.

Bruno tinha uma ideia e um título. Agora era só escrever o romance, mas isso é o de menos.

Ele saiu do banheiro se enxugando, com a sensação de dever cumprido, e estendeu a toalha sobre a máquina de lavar. Foi quando percebeu.

"Meu Deus!" De súbito, Bruno deu um pulo pra trás.

O vidro da porta estava aberto.

KGB estava olhando.

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