Sonhos da Vila Jacobucci

Era uma noite quente.

Com a janela aberta, o ventilador ligado e uma latinha de Brahma suando sobre a mesa, Bruno aguardava impaciente seu velho laptop iniciar. Ele mal podia esperar para começar a escrever, mas já pensava no quanto isso não seria exatamente como ele gostaria que fosse.

Escrever num laptop não era muito emocionante, não tinha a mesma energia que datilografar numa máquina de escrever. Bruno nunca tinha visto uma máquina de escrever na sua frente, mas tinha certeza que seria muito mais emocionante escrever em uma.

O laptop era... Frio.

Não. Não era bem essa a palavra.

O laptop era...

Bom, seja lá o que for, não era importante. O fato é que as teclas do laptop não faziam o som seco e metálico das teclas da máquina de escrever e o papel não saía do laptop cheirando a tinta. Nem sequer saía papel do laptop: era só um monte de pontos escuros sobre um fundo de pontos claros. A máquina de escrever tinha um certo charme, era como "o som das rodas da grande locomotiva do entusiasmo empurrando o escritor pelos trilhos da inspiração".

Isso era bom! Bruno pensou em anotar, mas o laptop ainda estava... Sabe? Iniciando.

Bruno queria ser um escritor das antigas: datilografar seus poemas numa Olivetti Lexikon 80 (ele viu na internet que Bob Dylan usava uma dessas), sob o denso nevoeiro criativo da fumaça dos cigarros apagados no cinzeiro em seu apartamento mofado, meio chapado de uísque, depois de um dia de cão tentando manter seus sonhos vivos em Bunker Hill, Los Angeles (ele leu um livro sobre um escritor tentando manter seus sonhos vivos chamado "Sonhos de Bunker Hill").

Mas Bruno não tinha uma Olivetti Lexikon 80, nem a fumaça dos cigarros no cinzeiro, nem uísque, nem os perigos de Bunker Hill pra fazê-lo sonhar. Ele morava bem longe de Los Angeles, na Vila Jacobucci, a Brahma era bem mais barata que uísque (além de estar calor pra caralho!) e cigarro, afinal, causa câncer.

Tudo o que Bruno tinha era seu laptop velho que não fazia barulho quando ele digitava, a não ser o som da ventoinha. O Bruno odiava aquela ventoinha. Ela o desconcentrava, impedia que a inspiração fluísse através de sua veia artística. Se ele ao menos vivesse num lugar onde fosse difícil manter os sonhos teria material para seus poemas.

O laptop finalmente terminou de iniciar. Bruno fechou os olhos, soltou as mãos e parou de respirar por três segundos - para sentir a vida pulsando por todo o seu corpo, até chegar às pontas dos seus dedos. Pronto. Ele estava pronto para um grande poema.

Bruno estava calmo como o Tempo e impassível como a Eternidade. Ele abriu os olhos, esticou os braços e começou a digitar:

Carlos estava calmo
como o Tempo
e impassível
como a Eternidade.

Carlos era o alter ego de Bruno, seu personagem baseado nele mesmo. Ele abrasileirou "Charles" em homenagem aos seus dois poetas favoritos: Charles Baudelaire e Charles Bukowski.

Bruno estava em transe, em estado de fluxo, seus dedos formigavam. As ideias saíam de suas mãos como se ele fosse apenas uma estrada por onde elas passavam. Ele saberia responder qualquer pergunta que o fizessem. Suas mãos choravam poesia e naquele momento o universo inteiro caberia em sua quitinete. Ele continuou digitando:

Seu corpo era uma estrada
onde ideias viajavam.
Sua mente tinha
todas as respostas do mundo.
Suas mãos choravam poesia
e o Universo
inteiro 
cabia
em sua quitinete

Bruno parou de escrever. "É quitinete ou kitnet?".

Ele saberia responder qualquer pergunta que o fizessem naquele momento, menos essa. Bruno não podia continuar sem saber. Se seguisse deixando uma palavra errada para trás seu poema inteiro seria construído com base em um erro e perderia completamente a pureza poética.

Rapidamente, para não perder o fluxo, Bruno abriu o navegador. Pelo menos uma vantagem o laptop tinha sobre a máquina de escrever: acesso à internet. Mas a página não carregava. Bruno deslizou o olhar até o canto inferior direito da tela: sem sinal. Sim, outra vez, sem sinal de internet na Vila Jacobucci. Ele nem tentou o celular: mas estava sem crédito e completamente descarregado.

Com o fluxo cortado, Bruno podia sentir o poema se esvaindo, como se alguém abrisse a pia de sua inspiração e as palavras escorressem pelo o ralo para sempre, para o esgoto do esquecimento. Pouco a pouco ele voltava a sentir as pontas de seus dedos. As ideias foram embora tão rápido quanto chegaram, como se jamais tivessem acontecido.

Sem melhor opção Bruno foi dormir, pois a quinta-feira não seria nada fácil. Ele teria um dia de cão dirigindo aquele ônibus, tinha que resolver o problema do wi-fi, colocar crédito no celular e, deitado em sua cama, acabara de lembrar que tinha também que ligar na imobiliária: a infiltração no teto do quarto já estava mofando sua quitinete.

Maldita quitinete, fez Bruno perder um grande poema!

Não era fácil manter os sonhos vivos na Vila Jacobucci.

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