A santa da boina de veludo

Eu estava tão cansada. Cansada como não ficava há meses.

Acordei às seis, mas levantei só seis e meia.

Antes de mais nada coloquei o bendito livro sobre a mesa da cozinha. Não podia correr o risco de atrasar essa devolução na biblioteca. O bibliotecário, antes meu amigo (meu ex-único amigo), já nem olhava na minha cara. Isso fora a multa. Eu não podia correr o risco de pagar nada além do programado  — eu mal podia pagar o programado.

Minha última missão antes de subir no último ônibus do dia seria cansativa, mas gratificante, e eu podia imaginá-la: passar pelo lago do campus, subir as escadas ao lado do Restaurante Universitário, atravessar o gramado, subir a rampa de acesso à biblioteca, atravessar as portas de vidro, sorrir vitoriosamente para Felipe (o bibliotecário) e, enquanto mexo dentro da bolsa para pegar o bendito livro, ver meu dia passando ao contrário na minha mente, lembrando cada passo até chegar ao balcão:

O caminho da sala à biblioteca, a prova que terá acabado de terminar, o caminho do trabalho à Universidade, o longo dia de estágio, o caminho de casa até o trabalho, a manhã penosa em que minha primeira ação foi, antes de mais nada, pôr o livro sobre a mesa para não me esquecer de devolver.

Ao menos uma vitória esse dia teria.

Peguei minha boina sobre a mesa, botei na cabeça e segui — apesar desse cansaço, que sequer me deixava lembrar o conteúdo da prova. Isso me preocupava. Talvez fosse o estágio que consumia minhas manhãs e tardes, talvez fosse o peso de agora ter que lembrar de pagar as contas ou quem sabe fossem as aulas aos sábados de manhã — isso é legal, do ponto de vista da Legislação?!

Mas de qualquer forma era sexta-feira, e sexta-feira tem algo no ar, uma magia rejuvenescedora, por mais que se tenha aula no sábado de manhã.

Não que antes eu fosse a maior nerd do mundo, mas agora que eu não tinha tempo era atacada por uma estranha fome de conhecimento. Tive que rever as anotações para a prova no ponto de ônibus. As matérias do curso se tornaram as sobras do pouco que eu conseguia ouvir em aula, requentadas numa panela com farinha e ovos, uma gororoba acadêmica sem precedentes.

Minha hipótese: eu amo à moda de Platão. Amo alguém quando estou solteira, amo suas qualidades; amo trabalho quando estou desempregada, amo o dinheiro; amo os livros quando tenho que trabalhar, amo não ter que trabalhar. Agora eu estava empregada, mas não podia ler, mas já dizia o profeta: “Segue o lance!”

Existe um buraco negro entre as quatro e as cinco. Ele engole o tempo e nos faz patinar por horas, dias, semanas, até que chegue a hora de ir embora. Não importa o quanto você trabalhe: isso não vai durar mais do que três minutos.

Talvez seja esse buraco negro que sugou para a escuridão infinita toda a minha energia. Vai saber?

De qualquer forma não há como fugir da maldição da última hora.

Finalmente chega a hora, bate o sino, fim de jogo.

Mas dia de universitária só acaba à noite. E universitária não tem reserva. E tem prova. Então, fim do primeiro tempo.

Eu adoraria poder pensar “tomara que caia a parte que eu entendo melhor”, mas eu não entendia bem parte nenhuma. Porque o pouco que anotei em aula já não era muito, o pouco que consegui ler do que anotei tornava esse pouco ainda menos e ler anotações no ponto, dividindo a atenção entre notas e placas de ônibus, ajuda apenas a termos certeza de que não fazemos ideia do que estamos fazendo com as nossas vidas.

Eu não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida.

Dei um pulo, esfreguei os olhos e olhei novamente para a folha em branco. Não era a melhor hora para ter alucinações de sono. Mas também não era a melhor hora para fazer uma prova e foi daquelas provas que assim que você termina não faz ideia do que acabou de escrever.

Foi uma hora lastimável, digna de esquecimento. Pelo menos o dia estava chegando ao fim.

Mas dia de universitária tem prorrogação.

Antes de, finalmente, subir no último ônibus da sexta-feira e seguir confortavelmente para casa, hipnotizada pelo cansaço e pelas luzes dos postes, eu passo pelo lago do campus, subo as escadas ao lado do Restaurante Universitário, atravesso o gramado e a rua, subo a rampa de acesso ao patamar da biblioteca, atravesso as portas de vidro, encaro Felipe com um sorriso vencedor, abro o zíper e, enquanto mexo dentro da bolsa, meu dia passa ao contrário por minha mente, lembrando cada passo até chegar a esse balcão:

O caminho da sala à biblioteca, a prova que acabei de terminar, o caminho do trabalho à Universidade, o longo dia de estágio, o caminho de casa até o trabalho, a manhã penosa em que minha primeira ação foi, antes de mais nada, pôr o livro sobre a mesa; o livro que, nesse momento, ao virar a bolsa desesperadamente sobre o balcão frente ao sorriso vencedor de Felipe, eu agora tenho certeza de ter esquecido sobre a mesa da cozinha ao pegar a boina e colocar na cabeça.

Jogo a alça da bolsa sobre o ombro, exausta, após a última batalha (derrota) do dia e penso que pelo menos agora vou pra casa e posso dormir até segunda-feira.

Entro no último ônibus da sexta-feira, após a última derrota da sexta-feira e volto pra casa.

O bom de pegar o último ônibus é que eu posso sentar no lugar que eu quiser, porque nessa viagem dentro do ônibus só tem eu e o Bruno, o motorista/cobrador (meu novo único amigo). O Bruno e eu temos uma conexão: ambos reconhecemos a derrota no olhar um do outro. Então, quando um está ainda pior do que costuma estar o outro não puxa conversa.

Chego em casa depois de (mais) uma semana com gosto de 7 a 1. Penduro a bolsa na cadeira da cozinha e olho para o abençoado livro sobre a mesa, perfeito, intocado. Estiquei o braço para pegá-lo e enfiá-lo na bolsa e não correr o risco de esquecer de novo na segunda. Mas quer saber? Só de pirraça, deixei o bonito lá e prometi só colocar na bolsa na segunda-feira. (Eu não preciso dizer que na semana seguinte esqueci ele ali de novo. Preciso?)

Deitei na cama pensando na única vitória da semana, o gol de honra: dormir profundamente até... Me conformar e aceitar que naquela semana eu não ia ter nem o um do sete a um. Já com os olhos fechados me lembrei que agora eu tinha aula aos sábados de manhã, e não era optativa.

Vida de universitária, depois da prorrogação, tem pênaltis.

E eu estava tão cansada.

Verônica

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