A ilha do Senhor Chan

Da janela do seu apartamento no quarto andar, Suzana toma seu café e observa o Senhor Chan na horta da esquina. Todos os dias ele chega à seis em ponto, abre o portão do grande terreno, coloca seu grande chapéu e começa a trabalhar. Pelo menos todos os dias de segunda a sexta.

Suzana acompanha o início dos trabalhos do Senhor Chan desde quarta retrasada, quando foi dormir muito cedo e acabou acordando antes do despertador tocar. Desse dia em diante ela começou acordar mais cedo, passar o café e se posicionar na janela às cinco para as seis.

A horta da esquina é um lugar um tanto curioso, uma ilha verde flutuando no centro cinzento da cidade, e seu guardião, o Senhor Chan, é um senhorzinho que passa o dia todo cultivando uma grande horta nessa ilha.

Num dos cantos do terreno há uma construção com grandes portas de madeira onde o Senhor Chan entra todas as manhãs, depois de fechar o portão do terreno, fazer uma oração e dar sua ronda matinal entre as hortaliças. Pelo menos todas as manhãs de segunda a sexta.

Fica difícil ver o que o Senhor Chan faz dentro da construção, então Suzana deixa sua máquina fotográfica semiprofissional a postos sobre a mesa, já montada com sua teleobjetiva 250 milímetros (que é só um nome bonito pra uma lente com um zoomzão). Já que ela está observando, não tem nada de mais em querer enxergar melhor.

Mais que depressa, Suzana tira a tampa da lente, aponta para a porta da construção e foca para ver o Senhor Chan calçando as botas de borracha, colocando seu grande chapéu cônico de palha bege, pegando sua caixinha de madeira cheia de pazinhas alaranjadas e saindo da construção.

Entra no terreno, fecha o portão, faz uma oração, vasculha a horta, entra no barracão, bota as botas, coloca o chapeuzão, pega a caixinha de ferramentas.

"Nada de mais..." pensa Suzana, logo após anotar.

Sim, anotar.

É difícil lembrar o que cada vizinho faz.

Por isso Suzana deixa um caderno de anotações sobre a mesa, ao lado da máquina fotográfica semiprofissional com sua teleobjetiva.

Não torça o nariz e engula essa risadinha: se você morasse no quarto andar e tivesse uma máquina fotográfica semiprofissional com uma teleobjetiva 250 milímetros faria a mesma coisa! Ao menos é o que Suzana diz a si própria toda vez que se sente culpada por espiar o Senhor Chan, a vizinha da frente, Dona Marta, a vizinha de cima, Verônica, os universitários que esperam o ônibus no ponto da rua de trás ou Messias, o motorista de ônibus que às vezes espera o ônibus nesse mesmo ponto depois do seu turno.

Suzana fica imaginando como deve ser a vida dessas pessoas quando ela não está olhando. Onde será que o Messias mora? Pra onde Verônica vai com sua bolsa e sua boina de veludo toda manhã? O que o Senhor Chan faz em casa? Qual será o verdadeiro nome do Senhor Chan?

Não, não é "Senhor Chan".

Suzana não sabe nada sobre as pessoas que observa, por isso cria nomes e histórias pra elas em seu caderno. E não tem nada de mais nisso. Quer dizer, você faria a mesma coisa... Não faria?

Mas como já são quinze para as sete e Suzana tem que se trocar correndo pra não perder o ônibus (Messias, ou seja lá qual for seu nome, é muito pontual), não há mais tempo para criar histórias pra mais ninguém.

Suzana sai depressa. A última coisa que ela quer é topar com a Dona Marta, que sai pra comprar pão todos os dias pontualmente às cinco para as sete. Ela vive metendo o bedelho na vida dos outros, a Dona Marta — ou seja lá qual for seu nome.

Suzana sai depressa, mas espera tempo suficiente no corredor pra topar com Verônica na escada.

Desse nome Suzana tem certeza.

Verônica fala sozinha.

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