Verônica

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

Ela andava pra lá e pra cá. Uma pausa, um momento de silêncio. Devia estar parada na janela. É o que levava a crer sua movimentação. De repente, num sobressalto, de novo

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

E parava de novo. Devia estar descalça. No apartamento ela só andava descalça, ou só de meia. Se andasse de tênis não faria barulho nenhum. Se andasse de sapato seu caminhar faria "toc, toc" e não "tuc, tuc". Mas ela não tinha jeito de quem usa sapato, não com aquela boina. Seu estilo era outro.

Dava pra ver — ou ouvir — no seu caminhar que era uma pessoa ansiosa. Eram passos curtos, rápidos, como quem quer chegar logo, mas pareciam sempre parar no meio do caminho, como se algo a fizesse mudar de ideia, algum perigo, algo que pudesse dar errado. Havia uma parada entre as caminhadas, curta, e depois de uma série de paradas curtas vinha uma parada longa, sempre perto da janela.

"Se pá, ela fuma."

Suzana tinha quase certeza de que ela fumava. Dava pra intuir pelo padrão de sua movimentação. Sua mãe também era assim quando estava ansiosa: caminhava pra lá e pra cá com passadas curtas, acendia um cigarro e dava uma parada comprida, degustando calmamente a nicotina que seu organismo absorvia. E claro: sua mãe fumava, logo era ansiosa.

Ou era ansiosa, logo fumava.

"A ordem dos tratores não altera o viaduto."

De qualquer modo dava pra saber que dentro do apartamento ela só andava descalça ou só de meia. Se andasse de sapato o som de seu caminhar seria aberto, não abafado. A não ser que seu apartamento fosse carpetado, mas não havia apartamentos carpetados no Pasárgada. E ela não tinha jeito de quem usa sapato.

"Não com aquela boina."

Seu estilo é outro, com certeza. Ela não era do tipo que usa sapato, nem vestido longo, nem blazer. Ela não fazia o tipo corporativo, era até bem jovem pra isso, mas também não era desocupada. Devia ser universitária, apesar de parecer um pouco mais velha que os estudantes que esperavam no ponto do outro lado da rua. Quer dizer, não mais velha, mais madura.

Madura. Pelo menos parecia. Talvez não tão madura, talvez fosse só impressão. Mas desocupada com certeza não era. Acordava cedo e pegava o dez pra hora todas as manhãs — pelo menos todas as manhãs de segunda a sexta. Claro! O dez pra hora, "Universidade"! Ela pegava o "Universidade", devia ser, na certa, universitária. Apesar de parecer mais madura.

Tuc, tuc, tuc, tuc... Tuc, tuc, tuc, tuc...

Os passos curtos voltaram. Pra lá e pra cá. Se fossem outros tempos Suzana ficaria puta. Outros tempos ou outra vizinha. Suzana gostava dessa, já houvera piores no quinto. Bem piores. Piores do tipo corporativo, do tipo que anda de sapato no apartamento. Pareciam sempre querer sair voando, e bem que podiam! "Toc, toc, toc,toc..." Era difícil aguentar. Mas a de agora, a moça da boina. Essa era de boa. Sem comparação. Sem sapatos, sem festinha, sem visitas.

Sem visitas.

É, ela devia ser universitária, devia ser "de fora". Sem família aqui, sem amigos. Sem ninguém. Quer dizer... teve um moço uma vez, talvez amigo, namorado, namorido. Vai saber. Suzana só o viu uma vez, mas ele tinha jeito de ser daqueles que vêm sempre. Um piá com cara de sonso. Suzana sabia que não o veria mais, não tinha como, aquela cara de pateta, com uma pessoa tão... Madura.

"Será que eu pareço madura?"

Mais alguns passinhos descalços — ou só de meia — pra lá e pra cá. Pelo padrão de sua movimentação Suzana sabia que ela estava prestes a parar de novo com aquele zigue-zague e estacionar por um tempo na janela. Suzana foi até sua própria janela, se sentisse o cheiro do cigarro teria certeza de que ela fuma (só pra ter certeza de que estava certa, de que sabia ler os sinais). Mas que burrice! "Suzana, sua burra!" O ar quente sobe. Se ela acender um cigarro não dá pra sentir o cheiro do quarto, só do sexto.

Suzana se aquieta um pouco, talvez nunca saiba se está certa. Mas em seu silêncio ela escuta algo, um som bem baixinho, um tsc. Um isqueiro! Sim, foi um isqueiro! Ou ela teria imaginado? Se ela usasse fósforos Suzana teria certeza. Mas ela não tinha jeito de quem usa fósforos.

"Verônica..."

Ela escutou algo. "Verônica"? Será que a moça do quinto estava com alguém? Não pode ser, ela não ouvira mais nada desde... Desde que começara a prestar atenção. Se bem que não dava pra ouvir muita coisa do quinto longe da janela, só os passos mesmo.

"Sua burra!"

Não. Ela não parecia estar falando com alguém. Não nesse tom, não com essa pausa entre o início e o fim da frase, como se estivesse num filme. Parecia estar só pensando alto. Se é que é possível "pensar alto", pensar fora da cabeça, como se os pensamentos pudessem ser lidos ou ouvidos por alguém. Não, o nome disso é "falar sozinha".

Falava sozinha e com certeza fumava. Do jeito que ela falou consigo mesma dava pra ter certeza: "Verônica..." longa tragada, degustando calmamente a nicotina que seu organismo absorvia, solta a fumaça, "sua burra!". Quem fala sozinho e fuma costuma conversar consigo mesma durante o rito, e muitas vezes isso inclui se repreender, se xingar.

"Meu Deus, como ela lembra minha mãe!"

Verônica. Era esse então o nome. Suzana vai até a mesa silenciosamente, como se Verônica pudesse saber que ela a estava espiando caso ouvisse seus passos (se bem que nem se pode chamar isso de espiar, ela nem tava vendo nada, só ouvindo). Suzana vai até a mesa, pega o caderno ao lado de sua máquina fotográfica semiprofissional, e anota

Verônica. Fuma. Em casa anda descalça (ou só de meias, não sei ainda). Sozinha. Usa boina. Pega o dez pra hora. Universitária?

Sozinha. Suzana estranhou não ver mais ninguém depois do piá com cara de sonso. Verônica era bonita. Quer dizer, não exatamente bonita, não um "bonita" que se enquadra em todos os padrões de beleza, mas tinha alguma coisa nela — um estilo, um jeito — que tornava ela atraente. Quer dizer, devia torná-la atraente, para os homens. Ou para as moças que gostam de moças. Vai saber.

De qualquer forma, seja lá qual fosse seu drama, Verônica devia tê-lo esquecido ou ido dormir. O "tuc tuc" parou. Talvez fosse a deixa para Suzana. Não tinha nada mais interessante pra fazer.

***

Quinze para as sete. Depois de acompanhar a rotina matinal do Senhor Chan na horta da esquina com sua máquina fotográfica semiprofissional e sua teleobjetiva 250 milímetros, Suzana pega sua bolsa e desce as escadas: o Pasárgada tem seis andares, mas nenhum elevador. Ela desce tranquila (o ponto é do outro lado da rua), mas quando chega no portão sente que tem algo estranho. Ela fuça na bolsa e não encontra o cartão do passe.

"Suzana, sua burra!"

Suzana entra no prédio correndo, agora não tem mais tempo a perder — quatro andares de subida, mais quatro andares de descida, mais o tempo de encontrar o cartão, e lá se vai o hora certa avenida acima! Ela atravessa o pequeno estacionamento o mais depressa que pode antes de empurrar a porta e esbarrar com alguém que desce, tão desesperada quanto ela. (Ela pega o dez pra hora todas as manhãs. São dez pras sete agora.) Após o choque, ambas travam por um momento. Silêncio.

"Bom dia, Verônica."

"Fala: bom dia, Verônica! Não é tão difícil." Mas tudo parece difícil segunda-feira às dez para as sete da manhã.

— Desculpa.
— Foi nada.

Foi a única interação que o horário e a situação permitiam. "Suzana, sua burra!" Suzana sai correndo para um lado. Verônica sai correndo para o lado oposto, gritando baixinho, se é que isso é possível:

"Verônica, sua burra!"

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